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quinta-feira, 14 de maio de 2015

Morte aos bullies (ou a tareia que um comediante se achou no direito de dar a três jovens numa rede social perto de si)

A minha filha Carolina está em todo o lado, nas ruas, na Segunda Circular, a apanhar pêras. Mas quando fez esta campanha, no Verão do ano passado, a Carolina andava a levar pêras de um bullying refinadíssimo de uma catraia de dez anos na escola queque onde estuda. FOTO: Hermínia Saraiva

Chego tarde, chego sempre tarde às grandes polémicas: o dia começa cedo, tão cedo e com tão poucas horas de sono, e não posso chegar tarde a todos os sítios onde me esperam - é claro que alguma coisa tem que ficar para trás e, se assim tem que ser, que eu chegue apenas tarde às polémicas.
O dia todo é sempre a andar, ao estilo Concorde, asas abertas, nariz meio empinado para o céu (às vezes cabeça nas nuvens também), esta família é imponente e grandiosa, é de grandes voos e assemelha-se a uma máquina perfeita, que faz virar muitas cabeças de espanto. 

Mas depois ando tão envolvida nesta coisa de ser mãe que chego tarde às coisas terráqueas, àquelas sobre as quais se diz que marcam a actualidade, mas que a mim, que ando a velocidade suprassónica, me passam ao lado.

Ontem comprei uma polémica, coisa que há muito não fazia. E fui meter-me em polémicas logo no 13 de Maio, que não era dia para polémicas; era dia de sermos todos melhores pessoas e de percebermos a fragilidade e a inocência das crianças e como eventos extraordinários podem marcar uma criança para sempre. Os pastorinhos viram Nossa Senhora, reza o dogma, o mito. Infelizmente o13 de Maio de 2015 também lançou para a ribalta três crianças. Que não assistiram a nenhum milagre, não tiveram nenhuma visão. O 13 de Maio de 2015 violou três crianças. Uma e outra vez, repetidamente. Pelas redes sociais, pelos media, por todos nós.

A história é simples de contar, é quase banal nos dias que correm. Desta vez envolve um humorista da praça, que vestiu o manto não de santidade mas de justiceiro, inserindo um post na sua comunidade de perto de um milhão de seguidores, no qual denunciou uma barbaridade cometendo uma barbaridade. Uma barbaridade que se propagou como um incêndio de proporções dantescas, revelando o que de pior pode haver no ser humano.

O vídeo de violência gritante, que deixa qualquer um de nós com as entranhas revoltas - na véspera tinha estado a assistir a um documentário sobre os vinte anos após o genocídio do Ruanda e ainda estava com a natureza do mal na sua essência mais pura bem presente - lá segue o seu rumo viral, assim como o preâmbulo em que o humorista dos óculos azuis, embaixador anti-bullying, defensor dos fracos e dos oprimidos, se refere às infractoras, miúdas menores, de 'merdas de pessoas', sentenciando ainda do alto da sua toga de juiz que espera que com aquele post provem do seu veneno, vejam o que é bom para a tosse, levem umas chibatadas em público, pela Internet.

No seu post de indignação e de promoção à morte das bullies, o humorista nem sequer se apercebe que perpetua o ciclo de violência, que o amplifica a níveis inimagináveis, nem sequer pára para pensar que a vítima vai voltar a ser violada, agredida, quando, se calhar, já começara a sarar.

Mas seja feita a sua vontade, tanto na terra como no Facebook.

Voltámos à idade medieval, protegidos por um computador ligado à Internet, com forquilhas e tochas em riste na janela e no feed do nosso Facebook. É isto. Combate-se violência com violência e já não é olho por olho, dente por dente - é olho por empalamento em praça pública e, provavelmente, aqueles que passaram o vídeo horrendo da agressão e o textinho supimpa do humorista que o acompanhava, são os mesmos que estavam, há menos de uma semana, com pena do miúdo das orelhas grandes dos Ídolos da SIC, inflamando protestos, repassando petições e indignações variadas sobre a violação dos direitos de imagem e de personalidade das crianças e jovens.

Com a imagem da incrível manifestação de paz e amor que é a procissão das velas e tentando acreditar na humanidade dei comigo a pensar que, fosse este rectângulo um verdadeiro Estado de Direito, competeria a justiça à justiça e não a um post incendiário de um humorista. Se calhar sou só do contra, ou se calhar sou só um pouco mais sensata e dou por mim a pensar que se este fosse um Estado de Direito o humorista teria já um delegado do ministério público, a tratar de instruir um processo contra o serviço público de linchamento público prestado.

O tema do bullying é sensível nesta casa. Tenho uma filha linda, talentosa, especial, espalhada por cartazes outdoor de uma campanha da marca Portugal. Na publicidade a minha filha apanha pêras rocha, mas quando tirou aquelas fotos num pomar do Oeste a minha filha levava pêras do mais alto calibre de uma catraia de dez anos. Bullying refinado, bem pior que estaladas. Volto a repetir, de uma catraia de dez anos.

O que é que eu fiz? Fui à escola bater na miúda? Imprimi cartazes com a foto da menina e incitei à criação de milícias populares contra uma criança? Não. Fui adulta, envolvi a escola, as miúdas, os pais. Há cicatrizes e a minha filha embruteceu no processo. Tornou-se insegura, tímida, apesar de ter o seu lindo rosto impresso em grande formato pela Área Metropolitana de Lisboa e Porto.

No melhor pano cai a nódoa. Ontem à tarde, juntando-se à furiosa multidão, a Associação de Pais do Agrupamento da minha filha repassou o post da polémica, como exemplo que o bullying deve ser combatido, que o bullying não vencerá, que a solução é denunciar, sempre denunciar. A discussão vai acesa e não surpreendentemente a roçar o surreal no dito post dos pais justiceiros, e comigo a achar que vivo num paralelo diferente da esmagadora maioria da população, e que o ódio é ódio ainda que bem intencionado. 

Somos todos vítimas neste 13 de Maio. Vítimas de nós próprios. E somos todos culpados. Brutalmente culpados por não tentarmos ser melhores pessoas que os nossos instintos mais básicos. É isso que nos distingue dos animais, das bestas mais enraivecidas.

Deixo-vos link para a Convenção dos Direitos da Criança, assinada em 1990, e ratificada por Portugal nesse mesmo ano. Chamo atenção ao artigo 40º a todos quantos ontem o violaram, a todos quanto se acharam no direito de cometer esse crime. Se hoje a manchete dos jornais, se o post do Nilton fosse o espancamento das jovens por terem sido reconhecidas na rua, ou o suicídio do jovem pela humilhação a que foi sujeito, será que justiça tinha sido feita?

1 - Os Estados Partes reconhecem à criança suspeita, acusada ou que se reconheceu ter infringido a lei penal o direito a um tratamento capaz de favorecer o seu sentido de dignidade e valor, reforçar o seu respeito pelos direitos do homem e as liberdades fundamentais de terceiros e que tenha em conta a sua idade e a necessidade de facilitar a sua reintegração social e o assumir de um papel construtivo no seio da sociedade.
2 - Para esse efeito, e atendendo às disposições pertinentes dos instrumentos jurídicos internacionais, os Estados Partes garantem, nomeadamente, que:
a) Nenhuma criança seja suspeita, acusada ou reconhecida como tendo infringindo a lei penal por acções ou omissões que, no momento da sua prática, não eram proibidas pelo direito nacional ou internacional;
b) A criança suspeita ou acusada de ter infringido a lei penal tenha, no mínimo, direito às garantias seguintes:
i) Presumir-se inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida;
ii) A ser informada pronta é directamente das acusações formuladas contra si ou, se necessário, através de seus pais representantes legais, e beneficiar de assistência jurídica ou de outra assistência adequada para a preparação e apresentação da sua defesa;
iii) A sua causa ser examinada sem demora por uma autoridade competente, independente e imparcial ou por um tribunal, de forma equitativa nos termos da lei, na presença do seu defensor ou de outrem assegurando assistência adequada e, a menos que tal se mostre contrário ao interesse superior da criança, nomeadamente atendendo à sua idade ou situação, na presença de seus pais ou representantes legais;
iv) A não ser obrigada a testemunhar ou a confessar-se culpada; a interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e a obter a comparência e o interrogatório das testemunhas de defesa em condições de igualdade;
v) No caso de se considerar que infringiu a lei penal, a recorrer dessa decisão e das medidas impostas em sequência desta para uma autoridade superior, competente, independente e imparcial, ou uma autoridade judicial, nos termos da lei;
vi) A fazer-se assistir gratuitamente por um intérprete, se não compreender ou falar a língua utilizada;
vii) A ver plenamente respeitada a sua vida privada em todos os momentos do processo.
3 - Os Estados Partes procuram promover o estabelecimento de leis, processos, autoridades e instituições especificamente adequadas a crianças suspeitas, acusadas ou reconhecidas como tendo infringido a lei penal, e, nomeadamente:
a) O estabelecimento de uma idade mínima abaixo da qual se presume que as crianças não têm capacidade para infringir a lei penal;
b) Quando tal se mostre possível e desejável, a adopção de medidas relativas a essas crianças sem recurso ao processo judicial, assegurando-se o pleno respeito dos direitos do homem e das garantias previstas pela lei.
4 - Um conjunto de disposições relativas, nomeadamente, à assistência, orientação e controlo, conselhos, regime de prova, colocação familiar, programas de educação geral e profissional, bem como outras soluções alternativas às institucionais, serão previstas de forma a assegurar às crianças um tratamento adequado ao seu bem-estar e proporcionado à sua situação e à infracção.


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