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terça-feira, 11 de novembro de 2014

A família virótica - um pouco cansada em Dia de São Martinho

Dezoito meses de gente que finalmente aprendeu a sorrir e vai começando a balbuciar trapalhona as primeiras palavras. Lá atrás, no quadrinho bordado a ponto de cruz o aviso à navegação para os próximos tempos: Now panic and freak out!


Este blog devia ter mudado a sua designação, provisoriamente, e nas últimas quatro semanas, para A família virótica.

Neste intervalo temporal de um mesito, mais coisa menos coisa, fomos bombardeados por todos os lados com notícias alarmantes da auxiliar de acção médica do país vizinho e do seu mártir canídeo. Recebemos emails absurdos, reencaminhando infografias catitas sobre a prevenção do Ébola e os noticiários abriram com relatos do país onde uma doença altamente mortífera se juntou à check list que já incluía na sabedoria popular maus ventos e maus casamentos.

Por cá andámos noutros contágios.

Teresa Romero já passou à história no bom sentido (se fosse um gato já andava a fazer as contas às vidas que tinham sido descontadas do cartão de crédito) e na África Ocidental nada de novo, back to basics: a febre hemorrágica continuará a avançar e, se alguma coisa aprendemos deste frenesi mediático que ainda me conseguiu esfrangalhar os nervos da minha mais velha meia neurótica e um pouco hipocondríaca, é que a vida de um cão em Espanha vale mais indignação e clamor que a de centenas se não milhares de africanos largados à sua sorte.

Se uma árvore cair no meio da floresta e não estiver lá ninguém por perto para ouvir, ouvir-se-á o seu estrondo? Por outras palavras: se morrer um ser humano de tez escura  em África e não estiver por lá uma câmara de televisão, um smartphone e uma decente ligação à Internet para streaming nas redes sociais quase instantâneo, irá causar-nos tanta aflição como o abate do pobrezito do cão da espanhola?

A esta dúvida filosófica poderia até acrescentar outra: depois de toda esta bimbice seremos nós os mesmos se nos banharmos nas águas de um mesmo rio onde molhámos os pézitos anteontem? Ou vamos a correr ligar para o Saúde 24 com medo do contágio?

Não sei... 

Tenho dias em que me apetece abraçar o mundo, em que vejo grandeza nos mais pequenos gestos, onde me entrego com todo o ser à crença inabalável que há bondade em todo e qualquer estranhos com que me cruzo. Regra geral, porém, o mundo é um lugar meio horrível, onde impera o salve-se quem puder e, por isso, é que o Correio da Manhã é líder de vendas, audiências: ali está, sem falinhas mansas, numa tinta que esborrata as mãos, um relato cru e sem floreados da natureza humana – a natureza do mal, grudada naquela tinta negra que se entranha na pele a cada página que se vira no café da esquina.

Não me interpretem mal: não estou desanimada, deprimida ou prematuramente a azular, como há-de acontecer quando este bebé nascer e as hormonas se descompensarem todas. Estou apenas cansada. Muito cansada.

A vida é bela, a nossa pelo menos é, e fazemos por isso também. Enquanto matriarca deste clã vou navegando pelo caos, aparando-lhe as garras afiadas, e descobrindo, tateando de mansinho, estratégias passivo-agressivas para domar a disfuncionalidade que há em todo e qualquer um de nós (e sim, acredito piamente, que o universo todo - e sobretudo os quartos dos miúdos e a minha sala de estar - caminham constantemente para o caos e às vezes os meus dois braços e as minhas costas vergadas pelo peso de um bebé de fim de tempo não chegam para o ordenar ainda que por muito pouco tempo).

A partir deste fim-de-semana que passou, a Legionella passou a fazer parte do nosso léxico e das conversas de café - deixando o São Pedro e o rebaptizado IPMA bem chateados da vida, porque costumam ter abuso de posição dominante impunemente neste tipo de conversa da treta e da circunstância. 

Já vimos este filme com o H1N1 ou o Ecoli, sendo que no primeiro caso a indústria de líquido desinfectante esfregou bem as mãos bem higienizadas de contentamento e agora nem por isso; talvez apenas a dos desodorizantes e a recomendação do Director Geral de Saúde de evitar o duche tenha alguma sorte (sempre me perguntei para que quero um desodorizante com 48 horas de eficácia, como apregoa a publicidade, se tomo banho todos os dias....). 

Tudo isto me lembra a saudosa Enciclopédia da Família do Readers Digest, que o meu avô Oliveira tinha alinhado no escritório, em frente à sua secretária, em muitos volumes de capa dura forrados a tela cinza azulada e letras gravadas a dourado em baixo relevo.

Navegávamos pelos sintomas, em complexos fluxogramas labirínticos, que nos mandavam para trás e para a frente, como numa aventura. Sem sabermos que um dia haveria um doutor House que nos faria as delícias com o seu mau-feitio e perna coxa, fazíamos diagnósticos diferenciais e sentenciávamo-nos uns aos outros doenças raríssimas e graves, como estas que agora nos chegam quase diariamente pelo ecrã plano da sala, através de cabo ou fibra óptica, com um alarmismo de sirene antiaérea.

Por aqui, andamos há quatro semanas com a Virose dos Putos
Vómitos e diarreia (ainda pensei duas vezes em escrever diarréia; é uma palavra tão feia, meu Deus!). Nada que vá parar às notícias; bem mais comezinho e banal…

Lembro-me bem do meu pediatra - e décadas mais tarde pediatra dos meus filhos - explicar à minha mãe o que era uma virose: 'Quando não sabemos o que é, é uma virose..."

Antigamente não havia assim tantas viroses, parece-me. Seria do sabão azul e branco com que lavávamos as mãos no tanque de lavar as cuecas à mão? Eu estava mensalmente no seu gabinete com anginas, o meu irmão Leonardo tinha dores de crescimento, mas, caramba, acho que tive apenas uma virose na vida em criança.

Cá por casa, em quatro semanas, já vai na terceira volta, como num Grande Prémio da Virose: passa ao outro e não ao mesmo, em ciclo infinito como o do oito que o meu filho António não tarda nada aprenderá na escola (vamos no cinco e hoje aprendeu o tê). 

É um vai e vem e haja máquinas de lavar e secadoras de roupa para tanto edredon e lençóis que nunca mais serão os mesmos (piorzinho só o leite com chocolate semi-radioactivo do Lidl que, passados quase dez anos não sai dos lençóis da mais velha, por mais água oxigenada que eu lhe ponha, encapotada em branqueadores e aditivos caríssimos, embelezados e acondicionados em embalagens coloridas com logótipos vibrantes, que me chamam do linear do supermercado como um canto de sereia fada do lar).

E assim vai a família virótica.

Ontem pus uma velinha ao Santo António, pedindo-lhe, aflita, que impedisse mais um descalabro, assim que o pressenti na tez ainda mais pálida do António à hora do jantar. Mas o Santo é mais dos casamentos, e dos meninos, e dos responsos quando algo se perde cá por casa. Cinco minutos depois (re)começava tudo de novo. Talvez o Santo não ache grande piada a estas velas de LED. A tecnologia ganhou o Nobel mas se calhar para milagres só vá lá com parafina e pavio…

Hoje vou pedir ao São Martinho (mas cadê o Verão? A agenda do telemóvel enganou-o este ano...)

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