Quem faz um blog fá-lo por gosto

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

As manhãs

Quando eu crescer vou fazer campanhas para o Calvin Klein. Não são só as miúdas que rebentam a escala nesta casa.
Foto: Pai João
As rotinas já estão domesticadas, mas ainda não estão devidamente amestradas como se assistíssemos despreocupadamente a uma coreografia de natação sincronizada, sem pensar no esforço e trabalho que aquele bailado todo deve ter dado a preparar.

Apesar de já termos mandado às calendas uma folha do calendário desde que o ano lectivo nos escanacarou a porta, deixando tudo em pantanas, a máquina ainda não está devidamente afinada. Mas para lá caminha.

O dia começa cedo. Começaria sempre cedo, de qualquer forma, mas a minha bexiga de grávida está sincronizada com o passarinho que começa a cantar às quatro da madrugada. O Outono chegou de mansinho e sem com ele trazer o cair das folhas ou, pelo menos, a paleta de ocres e amarelos com que pinta o quadro da realidade. O passarinho talvez esteja feliz por isso; talvez seja essa a sua inspiração matinal, ainda o raiar do dia vem tão longe. Sinto, porém, a mais melancólica de todas as estações do ano a instalar-se através da alteração de comportamento dos meus gatos: a forma como se alapam à molhada indistinta de pelos e bigodes, aos pés da cama, grita toda ela Outono.

O passarinho canta, eu levanto-me, são quatro ou cinco passos até à casa-de-banho, e o Verão já cá não mora: não tropeço em gatos solidários com a bexiga alheia - deixam-se estar quentinhos como botijas ronronantes e dali não saem, dali ninguém os tira.

Duas horas e picos depois toca o telefone; escolhi uma melodiazita que me lembra percussões africanas. Era o mais sereno que se podia encontrar do cardápio de alternativas que me apresentava o Window Phone para despertar (no Blackberry tinha um gongo chinês para acordar mais zen).

Hei-de deixá-lo tocar a lenga-lenga mais duas vezes, mas apenas duas: à terceira é hora de fazer uma impressionante rotação de uma barriga que desafia todas as leis da gravidade e acender a luz da cabeceira. O pássaro das quatro da matina já não se ouve; deve ter enchido a barriga de minhocas e agora anda por outros voos.

O trio felino desta vez acompanha-me sincronizado até à casa-de-banho. Mas não o faz abnegadamente. Amor desinteressado é coisa de cão e esse dorme debaixo da cama até a meio da manhã - noutra vida foi jornalista.

A Farrusca e a Manga miam desalmadamente atrás de mim; o Pi põe-se em duas patas e dá-me turras nos joelhos. O anúncio blábláblá Whiskas saquetas impõe-se. Os gatos são os primeiros a reclamar a minha atenção matinal. E o meu cérebro começa a aquecer no momento em que divido duas saquetas por três gamelas, transformando-me numa calculadora e balança humanas.

Gamelas no chão.
Próximo!

Toda manhã é cronometrada com precisão de relógio suíço.
Levanto-me. Dou comida aos gatos. Acordo a Carolina.
Antes de entrar nesta idade da arca da velha (o armário é a peça de mobiliário que se segue) bastava abrir a luz e dizer 'bom dia filha' para que instantaneamente se levantasse, hirta como uma tábua, e com os fusíveis em piloto automático. Agora tudo mudou e, se calhar, também já é à terceira que a consigo despertar; não sei: hei-de estar mais atenta para ver se também é sensível à força fatalista deste número.

Volto à cozinha. Por esta altura a pequena Farrusca já está a dar conta das gamelas dos seus companheiros. Eles cedem-lhe o respasto sem refilar, como qualquer pai faz a um filho, mas por vezes eu chateio-me com a voracidade da amostra de gata que nos calhou na rifa e ponho o gato Pi, que está velhote, a comer à parte, e em paz longe da alimária da gatinha bebé.

Preparo o pequeno-almoço à filha mais velha. São umas bombas de chocolate em forma de pirâmide, de marca branca. Ela é tão profundamente adicta ao produto em causa que nunca tenho forças para enfrentar uma tempestade de privação de açúcar refinado logo às primeiras horas da manhã, sugerindo um menu alternativo. Isso fica para um dia destes; há demasiadas mudanças a ocorrer na sua vida de pré-aborrescente, a semana passada comprámos um soutien, por isso, nem pensar mudar-lhe agora os cereais do pequeno-almoço!

Há-de passar na SIC Notícias o trânsito na VCI e mais tarde a meteorologia, entre notícias mais ou menos importantes.

Tic-Tac-Tic-Tac, o espectáculo tem que continuar (ou é uma bomba-relógio em contagem decrescente?)

Há trabalho de casa obrigatório na véspera: roupas escolhidas a dedo (a piorseira e o pendant obrigatórios funcionam muito melhor no dia anterior), alinhadas aos pés da cama, à espera que corpinhos quentinhos e preguiçosos mergulhem para dentro delas.

Ainda não atingi a perfeição de deixar a mesa preparada para o pequeno-almoço. Um dia hei-de lá chegar. Ou talvez não. Sem pressões. Já há demasiadas pressões e no início do dia eu ainda tenho certezas que sou uma mulher-maravilha que deixa o seu Homem Aranha dormir mais um bocadinho o seu sono de beleza.

O António é o menino que se segue na perfeita linha de montagem desta família. Sento-me na cama ao seu lado, dispo-o e visto-o a dormir. Os homens cá de casa têm sono pesado. Pode cair o Carmo e depois a Trindade que eles continuam angelicais, colados à almofada sem resmungos, apenas desmaiados e inertes.

A certa altura tenho que o chocalhar. E enchê-lo de beijos. Ele há-de dizer alguma coisa muito melosa, como eu sou a mais linda, ou como me ama. Casa-de-banho com ele, o copo de leite e o Manhazitos já estão na mesa à sua espera e sei que, depois de lavar a cara e fazer xixi, vai mudar das notícias para o Cartoon Network, ainda que saiba que não o pode fazer.

O pai é o terceiro a acordar. O tamanho da minha barriga de oito meses não me permite alcançar a minha filha na sua cama de grades fixa. É ao pai, acabadinho de se levantar, que entrego a tarefa de preparar a benjamim deliciosa, uma bonequinha de porcelana morena.

A Aurora tem um acordar doce e feliz. Sigo aquele momento de profunda intimidade entre pai e filha à distância, da cozinha, enquanto chocalho o pó da papa láctea com um garfo e a alquimia acontece transformando leite numa argamassa a que me é difícil resistir. Enche-me a alma ouvi-los de longe. Mas talvez esteja na hora de dar o primeiro berro do dia, porque a Carolina ainda não se calçou, ou o António ainda não tocou no copo do leite.

Ultimamente há uma nova fase da manhã e que dá pelo nome finório de pediculose ou, se preferirem, pelo nome foleiro e preconceituoso de "piolhos". Passo as três cabecinhas a pente fino. Literalmente a pente fino. A expressão ganhou uma nova dimensão para mim.

Hoje, passadas umas boas três semanas de ausência, vamos voltar ao ataque. Acabaram-se todas as vias do diálogo; isto é uma declaração de guerra. Logo à noite vou fumigar preventivamente com champôs caríssimos e com cheiro a talco. Um dia declararei extinta esta raça que teimosamente teima em reaparecer. Espero que sim. Que não seja como o raio das baratas que vivem na Bimby (finórias de um raio).

Entretanto já estamos atrasados.

Mochilas às costas, casacos, bibes e brinquedos da praxe pendurados nos braços. A Carolina vai esquecer-se do cartão da escola e da luz do quarto acesa. Vai ser um corropio até alinhar tudo e todos no elevador. Cá em baixo há que  encaixar crianças em cadeirinhas e apertar cintos. Dispor depois toda a parefernália que acompanha a comitiva no pouco espaço que resta do minimonovolume que há uma década para cá nos acompanha para todo o lado com algumas marcas do tempo e da azelhice de um marido que tirou a carta aos 35 anos. São as suas rugas. Ou as suas dores de crescimento. Calha-nos a todos.

O motor arranca. Marcha-atrás, e depois a primeira a fundo porque a subida é bastante íngreme. Vários atalhos e caminhos secretos se o trânsito estiver inexplicavelmente compacto na Avenida de Roma.

Às nove da manhã está tudo despachado e eu regresso a casa (ou, geralmente, ao trabalho). Suspiro. Tomo um café e como um pão com manteiga.
Vem aí o resto do dia, mas este momento de regozijo pela tarefa cumprida ninguém mo tira.

Daqui a quatro semanas a rotina muda de novo e drasticamente. E este relato será como uma memória longínqua... Como nos tempos em que a minha mãe me acordava, ligando-me pelas 10h00, e a manhã começava lá para o meio-dia numa redacção de um jornal diário...

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

As "músicas-madrinhas" dos meus filhos

Perco muito tempo das nove luas que o meu ventre conta agora, pacientemente, pela quarta vez, a interpretar sinais praticamente invisíveis à vista mais desatatenta, a farejar o ar como um cão perdigueiro à procura de um rasto praticamente indelével, a guiar-me por um qualquer campo magnético que faz girar a terra e que, mais cedo ou mais tarde, me leva direitinha à música que foi feita à medida de cada um dos meus filhos.
Foi assim que cheguei ao fado de Carolina, do Chico Buarque, vaticinando que a minha primogénita traria nela e nos seus olhos azuis todas as dores e também todo o amor do mundo. (e eu serei sempre a voz que lhe diz que o mundo anda lá fora e que ela o poderá ter a seus pés se abrir a janela).



Rodrigo Leão e Ryuichi Sakamoto foram a minha companhia e do António nas longas viagens até Belém, quando a vida me atirou para um museu de arte moderna e contemporânea, no rescaldo daquela que foi a maior perda da minha vida: um filho que não vi nascer.
E foi ao som de um piano sereno, que me lembrava as águas calmas da piscina da minha infância, onde tantas vezes lavei a alma sob o olhar atento de uma lua mentirosa, que consegui sarar a enorme ferida que trazia aberta, e protegi e abracei o António meses a fio, em modo contínuo, repeat one, pelas ruas de Lisboa, na certeza que tudo correria então pelo melhor.
O Tejo ora do meu lado esquerdo, ora do meu lado direito, a furar engarrafamentos como quem fura a cobertura de chantili de um bolo de aniversário, camionetas de turistas asiáticos com poderosas máquinas fotográficas digitais do outro lado do vidro, enquadrados pelo som de uma canção de embalar que fez do meu rapaz a criatura mais leve do mundo e desta família.


A Aurora foi a luz brilhante que clareou tudo como um relâmpago que nos acordou de repente, que nos pôs no trilho certo, como um aviso à navegação que nos sobressalta porque só assim é possível retomar as rédeas do destino.
Ela cobriu as nossas vidas como um manto branco que espantou o medo do escuro, um temor infantil que trazíamos entranhado na pele, por todo o lado, despojados de grandes esperanças, deixados levar por um país trespassado por um resgate cruel, paralisado por uma crise selvagem. 
Ela é a luz das nossas vidas; ela é a possibilidade de tudo o que queiramos para futuro - e é por este seu condão que a sua "canção-madrinha" é Daylight and the Sun, de Antony and the Johnsons.


A Isaura esteve muitos meses sem nome, demasiados, ou talvez precisamente a conta certa para chegarmos à escolha de um nome que não agrada a todos mas que é a mais abençoada (quase consigo ver a minha avó a sorrir-lhe, sentada no seu cadeirão de couro, a rebentar de orgulho pela mulher que sou apesar dos desaires para os quais fui arrastada e tantos outros para onde me meti deliberadamente e sabendo bem ao que ia). 
Há muito, porém, que lhe escolhi a música. Tudo o que eu desejo para a minha filha-milagre, para a minha filha linda, bem-amada, está na canção "Menina da Lua", do compositor mineiro Renato Motha, aqui interpretada por Maria Rita.