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sexta-feira, 25 de julho de 2014

Divas, turbantes e piolhos


A consulta de obstetrícia das 20 semanas, marcada para o final do dia para não atrapalhar os sempre inevitavelmente complicados dias de trabalho, atrasou mais de duas horas.

A prole numerosa ficou amontoada num consultório lindo, com as paredes forradas com vinis de pormenores da flora autóctone dos Açores. Já seríamos demasiados num consultório normal, quanto mais ali, no Jardim das Amoreiras, numa casinha pequenina onde dá vontade de brincar com as bonecas.

Durante a longa espera, os putos devoraram quase todos os biscoitinhos graciosamente oferecidos aos pacientes, rabiscaram desenhos na mesita disponibilizada para o efeito, sem não antes resmungarem a sua insatifação pelos lápis que não estarem afiados e pela qualidade duvidosa das canetas de feltro,  cansaram-se rapidamente de ver o Panda Biggs, numa tentativa gorada da recepcionista de os entreter, às duas horas de espera partiram um vaso de plantas e queimaram o resto dos minutos a desarrumar todos os pafletos e revistas disponíveis.

Já muito depois da hora do jantar, lá entramos para a consulta. Entrei com o António, sabendo que era obviamente uma má ideia, mas numa compensação de menino da mamã que muito provavelmente vai ter que levar com mais uma mulher lá em casa.

Seguiram-se as rotinas habituais, que o entediaram de morte: mede a tensão arterial repetidamente como quem joga ao 'melhor de três' (o médico não acredita na minha teoria que sempre que o vejo a minha tensão aumenta inexplicavelmente), marcha lenta até à balança electrónica, torcendo sempre o nariz e semi-cerrando os olhos com o que ali vem (às 20 semanas ainda estou 400 gramas mais magra do que antes de engravidar, apesar de ter engordado este mês dois quilos), e ecografia para saber onde pára a placenta do meu bebé - um dos maiores riscos desta quarta cesariana, praticamente seguida à terceira.

A placenta continua no sítio errado, com a inserção muito baixa, a tapar totalmente o colo do útero. Não vale a pena, porém, sofrer por antecipação: até às 24 semanas não há placentas prévias, por isso, é seguir a vida como se nada fosse. Depois, a vergonha e o constrangimento que passo a cada ecografia, apesar de médico algum, daqueles que me segue nesta vigiadíssima gravidez, me dizer seja o que for. Mas eu sei perfeitamente que a camada de gordura que acumulo na barriga dificulta tudo e que o esforço para obter as imagens pretendidas do bebé é enorme, e obriga a enterrar o ecógrafo com uma força enorme por entre as banhas fofinhas.

Andámos ali uns dez minutos à procura da confirmação do género do benjamim d'A Família Numerosa.
Na sua impaciência, o António dizia ao médico para o 'deixar jogar' também - referindo-se ao ecógrafo, como se o comando de uma consola de videojogos se tratasse. Perna traçada, mãos à frente, um corropio naquele ventre de um lado para o outro e, no final, o vaticínio de sempre: 'é quase de certeza uma menina, mas..."

E o António danado, a resmungar, vendo a vida a andar para trás com mais um adiamento: 'Ainda não é hoje que vamos comprar um jogo novo para a Playstation, pois não?'. 'Não, filho. Fica para daqui a duas semanas. Mas olha que ainda pode ser um menino!', disse eu teatralmente, sem acreditar em nada do que estava a sair pela boca fora, e semeando uma esperança tola e vã na criança.

Saímos dali fora de horas e na pequenina sala de espera duas grávidas muito grávidas ainda em compasso de espera. A noite seria longa naquelas bandas. Mas há um coração de um bebé num CTG, que decorre numa sala contígua e que embala todos os presentes. E, por isso, ninguém refila. É isto que se chama o estado de graça.

Seguimos na carripana velha esganados de fome e levo-nos direitinhos, sem poder supor, para o sítio errado. No pacato centro comercial do Campo Pequeno vai decorrer uma sangrenta tourada. Manifestações, bichas para o estacionamento, aficcionados e defensores dos animais em lados opostos das barricadas. Sou invadida por um instantâneo enjoo em resposta ao horror sangrento que já deve estar prestes a começar na arena, e altero os planos numa fracção de segundo sob protesto do António que queria comer um hamburguer no 'Berbequim' (leia-se Burguer King'): vamos só comprar uma sopa ao supermercado e qualquer coisa que se aqueça rápido para o jantar.

Chego a casa nauseada e ainda me zango com o António por ele se armar em parvo e ousar partilhar que quer ir à tourada. 
'Correr com os touros', diz ele com voz meiga.
Pronto, ao menos não quer fazer mal ao bicho. Porém, o alívio dura pouco (já basta o que basta e o que me preocupa o quanto ele gosta de matar formigas): a possibilidade de o antever forcado, apesar de fazer algum sentido na sua propensão cósmica para o desaire e atracção para as actividades extremamente perigosas, faz-me tremer o olho esquerdo e eriça-me a pele.

Sai tudo do carro em filinha indiana e azar dos azares outra vez: elevador avariado. Lá vamos em combóio, alinhados, na escalada de sete andares. Sacos de compras e bebés inclusos e exclusos pelas escadas acima.
A cada andar uma alegria esquizofrénica de quem vive num prédio onde há um parente próximo a cada patamar: no segundo a avó Magui, no terceiro o tio-avô Zé, no quarto o tio Leonardo, no quinto o tio-avô Manuel, no sexto os 'tios' David e Inês, depois nós, e por cima ainda o primo Pedro e a Tia Milucha. Babysitters e gente para desenrascar um ovo ou uma chávena de açúcar não nos falta!

Aquece a sopa e o jantar, vamos a banhos rápidos e a um corropio de mochilas para o último dia de praia da colónia de férias, que arrancará bem cedo, daí a pouco mais do que uma dezena de horas. Suspiros e algum cansaço. Mas o espectáculo tem que continuar; é assim todos os dias.

Para emprestar algum glamour a um dia alucinado, e também para ganhar ânimo, decido enfiar literalmente a carapuça. Vou ao quarto e tiro da gaveta o presente de anos que a minha mãe me deu, oncretizando um antigo sonho de consumo de uma menina que sempre teve queda para diva: um turbante como os das actrizes dos filmes de Hollywood dos anos 50.

Já com o António dentro da banheira, abro a gaveta do lavatório, passo pelos lábios o baton escarlate que nunca tenho coragem de usar, e decido que vou brincar às donas-de-casa-grávidas-deslumbrante-digna-de-contracenarem-com-o-Don-Draper-no-Mad-Men. E é aí que disparo a selfie com olhar matador e sobrancelha despenteada mas levantada; vai para o Facebook. Agradeço à minha mãe o divónico presente.

A minha mãe o meu irmão Leonardo são os únicos que me dão presentes de anos e Natal. E eu agradeço que assim seja. A casa é pequena de mais para as tralhas já acumuladas e vivem dez seres vivos num t4, se contabilizarmos os inclusos e os irracionais, com dois pares de patas e bigodes simpáticos.

De repente, a meio do momento de fervor hedonista, o António diz, da banheira: 'Lava-me outra vez a cabeça, para me tirar as comichões'. E eu, nem precisava de estar de turbante na cabeça, como uma cigana vidente, para que a bola de cristal me transmitisse que algo de errado se passava naquele naco de prosa. 'Lava-me outra vez a cabeça?' 'Mau...Como é que é? Diz lá isso outra vez?'

Não sei como nunca tivemos a Comissão de Protecção de Menores à porta de casa com os gritos lancinantes que ele solta a cada lavagem de cabeça: 'NA CABEÇA NÃOOOO!!!!' Imagino sempre a vizinha octogenária petrificada, na sua casinha muito arrumadinha e com cheirinho a velha, a tentar visualizar mentalmente a súplica do pirralho para que não lhe batamos na cabeça... E com a mania da perseguição que trago atrelada, acho sempre que ela me lança uns olhares estranhos e de reprovação sempre que nos encontramos no patamar. A hora do banho é  um espectáculo pouco dignificante que já prometemos e ameaçámos que ainda vamos filmar para depois o humilhar em serões em família na presença da namorada.

A abundância capilar do nosso filho lembra um casaco ensebado - parece que nem a água do chuveiro lá penetra. É um trabalho árduo lavar-lhe a cabeça. Impossível de o pentear ou tentar contrariar os muitos remoinhos, a dispararem cabelos em todas as direcções, do cucuruto até à testa. Era essa a justificação que dávamos sempre que nos perguntavam o segredo do garoto. Semana após semana, avisos à porta da escola 'os nossos amigos estão de volta' (em 'amigos' leia-se 'piolhos'), e a pergunta: 'como se esquiva ele, dono daquela exuberância de cabelos grossos e dourados à piolhada?' 'Os piolhos têm medo. Esta cabeleira é uma selva!, respondia eu.

Dez anos e dois terços depois de ter sido mãe e nunca vi um piolho na vida. Confesso que me gabei do feito. Os meus meninos são de oiro, quais piolhos quais carapuças!

Enfiei os dedos pelo cabelo molhado do petiz, como se fosse um pente fino a desenhar um risco pelas melenas e, por entre o bonito tom de unhas da Risqueé 'pantalona de chita' (ó meu Deus, não pintava as unhas há um ano e vai-me acontecer isto!), comecei a ver bichos a sirandar.

Vertigem, tudo sépia, zumbidos, inspira, expira - esta vai para o livro do bebé: cinco anos, sete meses e quatro dias:  'holocausto de piolhos num corropio acima e abaixo pela cabeça do menino', escreverei quando tiver tempo. Internet e telefone comigo: 'Serão mesmo piolhos?; Os piolhos não são pretos, os dele são brancos!? São tão pequenitos, mais parecem pulgas... Não, não são piolhos... Achas que são???'

Neste momento, já toda a gente se coçava. Até quem apenas leu o post que coloquei em jeito de desabafo e pânico na rede social. (E até a este parágrafo, conseguiram não coçar a cabecinha? Sim? Então e agora? Não sentem um comicho impossível de resistir? E como está essa pulsação? Ligeiramente acelerada, aposto!)

Com vontade de desmaiar, mas agarrando-me à mãe gorila que há em mim, catei o miúdo de turbante na cabeça. O macaquinho, humilhado, ficou quietinho. Ou isso ou adorou o cafuné.
De repente, no meio de um impressionante talento inato para o extermínio deste parasita, a cabecita a rebobinar 'espera aí: o puto dormiu ontem na minha cama...'. O João ajuda à festa: 'ele ontem andou com o teu turbante na cabeça...'

Ainda com várias dezenas de bichos na cabeça, mas com todos os bichos carpinteiros intactos, o António adormeceu lá pela meia noite.
A custo, o João Pestana veio visitar-me também. Mas dormi de touca de natação enfiada. Acordei com o cabelo em desalinho e com a pele da testa repuxada (se calhar inventei um novo lifting).

Bem cedo de manhã já tinha um Master em Piolhos, tinha tido formação sobre pentes eléctricos de extermínio e de DDTs de toda a espécie para a bicharada.
A professora, pelas oito da manhã, antes de seguir para o último dia de praia, passa-me mais um precioso dado sobre a morfologia do parasita que entrou de rompante na minha vida, andava eu de turbante de diva dos anos 50 na cabeça: a sua capacidade camaleónica de mudar de cor (os loiros têm, de facto, piolhos clarinhos: que amor!).

Sinto-me num episódio do National Geographic.
Acabo de escrever esta linha e liga a minha mãe. Os 'amigos' também já estão a passear no cabelo fininho da mais nova.

Bom fim-de-semana!


3 comentários:

  1. Diana,
    Escreves incrivelmente bem! Sem sombra de dúvida que és o melhor que tenho lido na blogosfera.
    Na descrição dos teus filhos revejo os meus em muitos aspetos, mas seria incapaz de os passar assim para palavras. Ajudou-me a arrumar algumas ideias. :)
    Que família linda e maravilhosa! Muitas felicidades para todos.

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  2. Na "trunfa" do meu filho também custa a entrar a agua, parecem penas de pato...

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  3. Pois é amiga é um prazer ler-te, qualquer dia tens que passar para o papel

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